A neutralidade, a imparcialidade e a morosidade no caso de impedimento de juízes: o que podemos extrair da ADI 5953 julgada pelo STF?[1] Se, por um lado, é evidente que “a qualidade de terceiro estranho ao conflito em causa é essencial à condição de juiz”,[2] configurando-se como pressuposto para sua capacidade especial subjetiva,[3] deve, por outro, estar sedimentado que a imparcialidade total do magistrado é uma ilusão, uma vez que não é possível que o aplicador do direito seja uma figura completamente insensível, desprendido de convicções e opiniões, cabendo ao juiz fazer um constante exercício de autocontrole em relação aos seus sentimentos.[4] Caso contrário, não seria possível o justo confronto “de duas verdades jurídicas relativas”, que conduzem o julgador a “um grau superior de convicção do produto do raciocínio”.[5] Afinal, há de se ter em vista que a imparcialidade do juiz é uma garantia de justiça para as partes, sendo assegurar-lhe um dever do Estado, pois (…) só a jurisdição subtraída a influências estranhas pode configurar uma justiça que dê a cada um o que é seu e somente através da garantia de um juiz imparcial o processo pode representar um instrumento não apenas técnico, mas ético também, para a solução dos conflitos interindividuais com justiça.[6] Cabe aqui, em um primeiro momento, distinguir a imparcialidade de outro importante princípio, também fundamental à manutenção da justiça: a neutralidade. No que se refere a neutralidade, temos que ela é garantida por meio da exigência do contraditório, ou seja, pela ampla defesa dentro do escopo de um processo judicial, permitindo o asseguramento de condições que possibilitem à contraparte trazer à tona os elementos tendentes a esclarecer a verdade. Com a aferição, portanto, de que o processo não se converterá em uma luta desigual, o juiz deve se colocar entre as partes e, mantendo sempre a distância entre ambas, dar a solução mais adequada ao litígio. Já a neutralidade, por sua vez, se faz necessária para que o juiz não suscite em ninguém a dúvida de que motivos pessoais estão influindo no deslinde do feito. É cediço que “não basta, outrossim, que o juiz, na sua consciência, sinta-se capaz de exercitar o seu ofício com a habitual imparcialidade. Faz-se necessário que não suscite em ninguém a dúvida de que motivos pessoais possam influir sobre seu ânimo.”.[7] Foi objetivando garantir a isonomia judicial que o legislador cunhou os conceitos de suspeição e impedimento, sendo este derivado de razões objetivamente constatáveis e aquele d e condições de ordem subjetiva.[8] Naturalmente, os casos de impedimento são mais graves e, ao contrário da suspeição, que não afeta o julgamento se não houver recusa do julgador pela parte, ameaçam a coisa julgada.[9] Porém, a discussão envolvendo estas bases processuais precisa permear um aspecto mais profundo, que envolve a essência humana de um processo judicial. A preocupação com a imparcialidade do magistrado é quase tão antiga quanto o próprio direito de ação. Neste campo, encontramos influência decisiva de Roma, cujo direito ainda nos influi consideravelmente.[10] A extensão da República, e, posteriormente, do Império, tornou necessário o desenvolvimento de refinado aparato jurídico, possibilitando a administração das terras expandidas e, como aponta Ives Gandra da Silva Martins, garantindo segurança jurídica aos dominados, servindo como verdadeiro instrumento de conquista.[11] É nesse contexto em que se dá o aparecer do ‘processo civil’ de uma forma mais bem acabada e semelhante a que temos hoje. É no direito romano que são racionalizadas as categorias fundamentais de essência do direito, que tão intimamente se ligam à accio. São elas a bilateralidade, a exigibilidade, a irresistibilidade e a universalidade. Essas categorias, juntamente ao direito de ação, marcam a passagem de uma perspectiva moral do agir para uma perspectiva jurídica: se antes era dever moral cumprir a obrigação devida, em Roma passa a ser dever jurídico, podendo a outra parte envolvida exigir judicialmente o cumprimento da prestação.[12] O dar a cada um o que lhe é devido agora tem como critério a norma jurídica. Garcia Maynez assinala como mesmo hoje só compreendemos a existência de um direito, juridicamente falando, se, do outro lado, houver uma obrigação correlativa.[13] É interessante notar como a própria iconografia da Justiça no período romano representa a importância da ideia de isonomia por seu direito inaugurado. É aqui que, pela primeira vez, a figura da Justiça aparece vendada, trazendo a ideia de que a lei deve ser igual para todos: Pensa-se que as deusas gregas da Justiça, Thémis ou Diké, armadas de espada, sem o fiel da balança, representam uma realidade epistemológica e normativa anterior e menos desenvolvida que a deusa romana Ivstitia com fiel da balança. A atividade do executor simbolizada pela espada punitiva perde importância, para os romanos, face à valorização do conhecimento, do intelecto e do rigor, simbolizados pelo fiel da balança, alegórico ao pretor romano. Nas primeiras representações conhecidas, a deusa da Justiça surge de rosto descoberto, sem venda, aparentemente aludindo à necessidade de ter os olhos bem abertos e observar todos os pormenores relevantes para a justa aplicação da Lei, só mais tardiamente a figura da deusa se revela de olhos vendados. Não significa que a justiça seja cega, mas que trata a todos com igualdade. Não vê, porque a lei é igual para todos.[14] Não seria exagero afirmar que tal mudança na representação, calcada no apelo por igualdade, reflete também a ideia de um juiz neutro, pois somente o terceiro imparcial seria capaz de igualar os dois pratos da balança do direito. Outro doutrinador, Tobias Barreto, nos aponta três fases do desenvolvimento do direito de ação para os romanos: A primeira, da legis actio, forma mais antiga, restringia o conhecimento do direito e do processo como uma ciência oculta dos pontífices; em um segundo momento, em contexto de demandas da plebe, a fórmula se estabelece, indo desde as reformas iniciadas por Deocleciano até sua finalização por Constantino; finalmente, em um contexto de declínio de Roma, há a fase da cognitio, assinalando sua decadência, aqui, em uma retomada das primeiras manifestações processuais, a classe jurídica se entrega a sua mais livre vontade.[15] Evidencia-se que, muito embora a ideia de uma terceira figura a dirimir o conflito fosse tão antiga quanto o próprio processo, talvez por a ele ser tão fundamental, preocupações mais refinadas com a imparcialidade, a isonomia e a segurança jurídica, refletidas em, por exemplo, ser concedido a plebe conhecer e operar o direito, só assumiram protagonismo na segunda fase do processo romano – e talvez por isso ela tenha sido a mais expoente. Hoje, repetindo o que esses juristas nos legaram, ainda prestamos fundamental papel à figura do juiz como terceiro neutro. Fica claro, pois, que a neutralidade e a imparcialidade se tratam de princípios que, caso violados, causam mácula ao processo e ferem a credibilidade do Judiciário. A sociedade, por seu lado, concentra expectativas em relação às atitudes dos juízes enquanto exercentes de seus respectivos papéis sociais. Conforme exposto, é preciso que se reflita sobre a ilusão de que o juiz não se vale nem por um instante de suas paixões e ideologias na função que exerce. Mesmo com todos os atributos oferecidos para se garantir o caráter independente do judiciário, há uma essência humana intrínseca ao processo judicial, fato este que corrobora com a colocação feita por Eugenio Raúl Zaffaroni de que é insustentável pretender que o juiz não seja também um cidadão.[16] Como tudo no direito, no entanto, a imparcialidade e a neutralidade não devem ser buscadas como algo absoluto – seja por sua impossibilidade humana, seja por sua impossibilidade sistêmica. A ADI 5953 nos traz a oportunidade de refletir acerca deste tema, pois fica nítido que o art. 144, VIII do Código de Processo Civil causa um impedimento generalizado nas funções da justiça. Ora, seria infactível supor que, ante a tantos processos que se acumulam nos tribunais brasileiros, fosse possível ao magistrado, diante de cada caso a ser julgado, que conferisse com cada um de seus parentes de até terceiro grau se alguma das partes já fora assistida por este em algum momento em alguma outra coisa. O dispositivo atacado, ao ordenar a situação supracitada, acabaria por prejudicar outro princípio também muito caro à manutenção da justiça: o da celeridade processual. Não haveria como ou porquê manter um dispositivo em nosso ordenamento que apenas causaria maior morosidade, tudo em busca de uma ilusória imparcialidade total. Concluindo: se em Roma a queda do direito se deu por uma excessiva permissividade quanto às questões de parcialidade e de falta de apego à legislação e à tradição jurisprudencial, não deixemos que a queda do direito presente se dê pelo excesso em contrário. Mostra-se, mais uma vez, que se trata de buscar uma questão de razoabilidade: é inegável que a imparcialidade não é apenas necessária, é, em verdade, nota distintiva de qualquer direito que se pretenda justo – até por isso se encontra positivada. A beleza deste princípio, todavia, não deve nos cegar quanto à vida real: de que adiantaria um ordenamento perfeito, em tese, se sua aplicação se mostra infactível? Laura Gandra Laudares Fonseca – Advogada, mestranda em Direito Constitucional pela Universidade Federal de Minas Gerais; especialista em Direito Constitucional pelo CEU Law School. Guilherme Gandra Martins – Graduando em direito pela Universidade Presbiteriana Mackenzie .
Ganhou notoriedade no universo jurídico, o teor do caso envolvendo a discussão sobre a constitucionalidade do art. 144, VIII do Código de Processo Civil (que prevê o impedimento do juiz nos processos em que a parte for cliente de escritório de advocacia de cônjuge, companheiro ou parente consanguíneo, em linha reta ou colateral, até o terceiro grau, ainda que, na causa submetida a ele, a mesma parte seja representada por advogado de outro escritório.). O CPC já prevê o impedimento se o parente do magistrado atuar como defensor público, advogado ou membro do Ministério Público, ainda que não intervenha diretamente no processo. Conforme a ação apresentada (ADI 5953), a extensão do impedimento dá às partes a possibilidade de usá-lo como estratégia para definir quem julgará a causa. Portanto, o dispositivo do CPC estabelece que o impedimento quando parente de até terceiro grau atuar no processo como defensor público, advogado ou membro do Ministério Público. O parágrafo 3º desse artigo, por sua vez, estende o impedimento aos casos de mandato conferido a membro de escritório de advocacia que tenha em seus quadros advogado nessa relação de parentesco, “mesmo que não intervenha diretamente no processo”. Em julgamento recente, o Supremo Tribunal Federal invalidou a ampliação de impedimento de juízes. Para a corrente majoritária do STF, a regra do novo CPC ofende o princípio da proporcionalidade. O julgamento causou revolta em parte da ala jurídica, que defendeu o fato de que o escopo de discussão da ADI 5953 fere princípios elementares do direito. Que exige uma conduta do magistrado que depende de informações que estão com terceiros. Ou seja, há quem argumenta que o juiz não tem como saber se uma das partes é cliente de advogado que se enquadre na regra de impedimento, porque não há no processo nenhuma informação sobre esse fato objetivo. Uma outra parte da análise partiu da ideia de que tal inciso discutido, caso seja aplicado em sua literalidade, pode tornar a atividade do magistrado juridicamente e administrativamente impossível. Fato é que todas as observações partem do princípio de que é imprescindível à lisura e, ao prestígio das decisões judiciais, a inexistência da menor dúvida sobre motivos de ordem pessoal que possam influir no ânimo do julgador. Todavia, neste texto, o que pretendemos é discutir o caso sob um outro aspecto. Para iniciar a discussão e, a reflexão, lembramos que a doutrina representada por Miguel Reale define o ato interpretativo no processo como o esforço do intérprete de compreender a norma, objetivando aplicá-la em sua plenitude, com vistas aos fatos e valores promanados e supervenientes.A imparcialidade total do juiz nos julgamentos é uma ilusão?
[2] CINTRA, Antônio Carlos de Araújo; GRINOVER, Ada Pellegrini; DINAMARCO, Cândido Rangel. Teoria Geral do Processo. 24a ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2008, p. 315.
[3] MARQUES, José Frederico. Manual de Direito Processual Civil. 12a ed. São Paulo: Saraiva, 1987, p. 209.
[5] COELHO, Luiz Fernando. Lógica jurídica e Interpretação das leis. Rio de Janeiro: Forense, 1981, p. 210.
[6] CINTRA, Antônio Carlos de Araújo; GRINOVER, Ada Pellegrini; DINAMARCO, Cândido Rangel. Teoria Geral do Processo. 24a ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2008, p. 59.[7] THEODORO JÚNIOR, Humberto. Curso de Direito Processual Civil. Vol. 1. 55a ed. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2014, p. 809.
[8] SCARPINELLA BUENO, Cassio. Curso Sistematizado de Direito Processual Civil. v.1. São Paulo: Saraiva Jur, 2018, p. 595.
[9] THEODORO JÚNIOR, Humberto. Curso de Direito Processual Civil. Vol. 1. 55a ed. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2014, p. 809.
[10] FRANCO MONTORO, André. Introdução à Ciência do Direito. 25a ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2000, p.33.
[11] GANDRA MARTINS, Ives. Uma Breve Introdução ao Direito. 2a ed. São Paulo: Migalhas, 2005, p.183.
[12] SALGADO, Joaquim Carlos. A Idéia de Justiça no Mundo Contemporâneo: Fundamentação e aplicação do Direito como ‘maximum’ ético. Belo Horizonte: Del Rey, 2006, p. 67-87.
[13] GARCIA MAYNEZ, Eduardo. Introduccion al Estudo del Derecho. México: Editorial Porrua, 1978, p.247.