Especialista em direito tributário, Maria Carolina Gontijo se tornou conhecida nas redes sociais por explicar de um jeito simples assuntos complicados do mundo dos impostos e o seu impacto na vida das pessoas e empresas. Em entrevista ao Brasil 61, a “Duquesa de Tax” afirmou que a reforma tributária em curso no Congresso Nacional deve seguir o mesmo caminho. Ou seja, nada de querer complicar o texto com diversas alíquotas ou regimes com tratamentos diferenciados. Para a professora do Insper, não se pode abrir mão do principal objetivo da reforma: simplificação.
Durante a conversa, Gontijo explicou as causas por trás do “manicômio tributário”, o que o país tem a ganhar com a modernização dos impostos sobre o consumo de produtos e serviços e afirmou: nunca houve um momento tão propício para a aprovação da reforma tributária como agora.
Confira a entrevista completa com a especialista.
Brasil 61: O Grupo de Trabalho da Reforma Tributária da Câmara apresentou o relatório com as diretrizes para a PEC da reforma. Agora vai?
Maria Carolina Gontijo: “Eu acho que a gente nunca teve um ambiente tão propenso para o “agora vai”. As pessoas foram tomando consciência do quão difícil é o sistema tributário brasileiro que isso acabou virando não só movimento da sociedade, como um movimento até dos próprios políticos. As pessoas falam assim comigo: ‘cê acha que agora vai?’. Eu falo: ‘agora é a hora certa da gente discutir’. Se vai, aí já envolve questões políticas, enfim, mas acho que nunca esteve tão propenso.”
Brasil 61: O sistema tributário brasileiro é tão complexo que ficou conhecido como “manicômio tributário”. Na sua avaliação, quais são os principais problemas desse modelo de cobrança de impostos sobre o consumo?
M.C.G.: “Uma das nossas grandes dificuldades é que o nosso sistema não foi pensado como um sistema e a gente foi criando puxadinhos ao longo do caminho sempre que a gente tinha uma necessidade urgente. A gente precisava de uma fonte de arrecadação e acabava criando algum tipo de tributo do consumo. Eu costumo brincar que baldes foram sendo colocados para segurar algumas goteiras. A gente foi criando algumas coisas para tentar não enfrentar uma uma reforma, que é um assunto complicado, que envolve muitos interesses”.
Brasil 61: Quais foram os puxadinhos que o país criou ao longo dos anos?
M.C.G.: “O que a gente tem? Um tributo sobre serviços que é da esfera municipal, o ISS; um [imposto] de mercadorias, que é o ICMS [estadual], mas também tem os federais: PIS, Cofins e IPI. Alguns têm sistemática cumulativa, como PIS e Cofins. Outros tem uma sistemática não-cumulativa. A gente criou um emaranhado tão grande de possibilidades nesse sistema, que acabou virando um castelinho de cartas, em que mexendo em uma carta a gente acaba mexendo em todo o sistema. Veja que no ano passado o governo tentou reduzir o IPI para alguns produtos e acabou esbarrando na questão da Zona Franca de Manaus e, aí, o IPI dos produtos que são feitos na Zona Franca de Manaus não puderam ser reduzidos. Existem tantos tributos sobre o consumo, que absolutamente ninguém sabe efetivamente quanto paga de tributo quando está consumindo alguma coisa. Então, você vai lá e compra no supermercado alguma coisa, você não sabe quanto, de fato, existe de tributos ali. Não é um sistema transparente”.
Brasil 61: As propostas que estão com as discussões mais avançadas no Congresso Nacional para a reforma tributária propõem a substituição dos cinco principais tributos sobre o consumo por um único imposto, o Imposto sobre Bens e Serviços (IBS). Elas conseguem resolver ou minimizar a complexidade do sistema atual?
M.C.G.: “Sem sombra de dúvidas. E eu acho que elas têm um ponto muito importante, principalmente, que é transformar o sistema em algo mais transparente. Hoje, a gente tem alguns tributos que, se você aumenta, as pessoas não conseguem perceber exatamente que aquilo foi um aumento de preço do produto. No início do ano, vários estados começaram a praticar alíquotas maiores de ICMS de combustível. Eu não vi ninguém desses estados criando algum tipo de protesto por isso. Por quê? As pessoas não conseguem perceber efetivamente onde que aquilo ali está impactando no dia a dia delas. [A reforma] vai deixar isso transparente, porque a partir do momento em que determinado governador precisar aumentar alíquota, que isso fique claro e as pessoas consigam cobrar efetivamente esses tributos que elas pagam”.
Brasil 61: Dá para chamar de reforma tributária uma reforma que não diminua o peso dos impostos sobre os cidadãos e o setor produtivo?
M.C.G.: “Eu não tenho esperança de nenhum tipo de diminuição da carga tributária. O que a gente precisa é criar esse ambiente para simplificação, porque pagar muito já estamos pagando. Se a gente chegasse agora nessa confusão e dissesse: ‘vamos ter uma redução da carga tributária’, a gente sabe que não existe espaço pra isso. A gente precisa ser racional nesse ponto. Precisa simplificar, porque a partir do momento em que a gente simplificar, vai ter um espaço grande para um ganho de desenvolvimento econômico. Existem inúmeros estudos a respeito: melhorando a economia, depois a gente vê o que a gente consegue para equalizar essa carga para que não fique tão alta. Eu bato muito na questão da simplificação e na questão da percepção das pessoas. Se a gente tiver isso, eu acho que já é um passo em direção a um sistema que seja mais justo.”
Brasil 61: Você acredita que, mesmo sem redução de carga tributária, a mera simplificação do sistema vai contribuir para diminuição dos custos sobre as empresas?
M.C.G.: “A gente tem não só empresas com inúmeras pessoas focadas na apuração e no cumprimento de obrigações acessórias, que são as informações que as empresas precisam prestar aos fiscos. A gente tem a parte onde as empresas planejam a questão tributária. Todo o esforço que está sendo colocado ali para tentar apurar ou informar corretamente a tributação é uma força econômica que está no lugar errado. E a simplificação já melhora tudo, inclusive a questão da segurança jurídica. Hoje a gente tem um contencioso tributário gigantesco, absurdo e que atrasa o país, por quê? A gente vê discussões que demoram muitos anos. Essa questão da insegurança jurídica é muito ruim pra nós. Primeiro, porque ela acaba espantando o investimento, porque se a gente está aqui e acha que esse sistema é um manicômio, imagina quem está vindo de fora. A gente paga um preço muito alto por essa complexidade que a gente podia estar investindo em outras coisas. Só da gente fazer isso já vai ser um ganho tremendo”.
Brasil 61: Por todos esses custos com as obrigações acessórias, além da quantidade das obrigações principais e diferentes legislações, as empresas brasileiras perdem muito tempo e gastam muito para produzir, o que encarece os bens e dificulta a competitividade delas no nível internacional. Acredita que este problema será resolvido com essa simplificação proposta?
M.C.G.: “Eu acho que não só vai melhorar, como essa simplificação vai acabar naturalmente diminuindo essa questão, especialmente no contencioso tributário. A gente tem a questão do PIS e COFINS. Tem 20 anos praticamente e a gente fica pensando: isso dá crédito ou isso não dá crédito? Até porque nós estamos numa economia que está mudando todos os dias. Se a gente continuar parado no tempo e esperando que muitos anos depois o Supremo venha decidir se software é serviço ou mercadoria, isso atrasa o nosso desenvolvimento econômico de uma maneira que é difícil até para a gente mensurar. E aí a gente fica naquela de saber se Crocs, por exemplo, é sapato de borracha ou sandália impermeável. No fim, é engraçado, a gente usa, mas a gente está rindo da própria desgraça, porque é muito ruim para o país esse tipo de discussão Então, a simplificação é essencial para as empresas, principalmente para que elas possam focar em outra coisa e não administrar contencioso. Ter um sistema simples é o que a gente precisa se a gente quiser ter uma economia forte e respeitada no resto do mundo”.
Brasil 61: Para você, o que seria uma boa reforma tributária?
M.C.G.: “O que a gente precisa principalmente é simplificação. A gente não pode correr o risco de tentar fazer uma reforma e que depois tenha um milhão de alíquotas diferenciadas, um milhão de regimes diferenciados, porque cada setor vai pedir o seu, a gente sabe como é que funciona o lobby. A gente não pode tentar complicar o sistema sob pena de jogar todo esse nosso esforço fora. A gente precisa ficar no mais simples possível. A reforma ideal seria um IVA simples, não um IVA Dual. Mas a gente precisa fazer o que dá pra fazer. O Brasil é um país de dimensões continentais. Então, nosso desafio não é pequeno. É como se a gente tentasse colocar uma reforma num continente inteiro. A gente sabe que é complicado. Se o IVA Dual não é o ideal, é o que dá pra fazer e já melhora muito. Este é o ponto principal pra mim: a gente não pode abrir mão da simplificação.”
Reforma tributária: relatório de GT da Câmara dos Deputados propõe IVA Dual
Fonte: Brasil 61